terça-feira, 16 de outubro de 2007

Um homem de teatro


" Contra toda a lógica, continuo a fazer planos como se fosse viver eternamente. Meu espírito continua jovem. Não tenho medo da morte, mas viver é delicioso demais".

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Paulo Autran




Quem vai fazer o papel que era dele?

Como o setor está entregue à própria sorte pelos governos, será imensa a falta da “autoridade cênica” que era Paulo Autran

Oswaldo Mendes

Há 40 anos, desde que o conheci, a sua voz ecoa em mim: “Sou apenas um homem de teatro. Sempre fui e sempre serei um homem de teatro. Quem é capaz de dedicar toda a sua vida à humanidade e à paixão existentes nestes metros de tablado, esse é um homem de teatro.” Era assim que Paulo Autran se apresentava em Liberdade, Liberdade nos idos de 1965. Palavras baseadas em textos de dois atores franceses, Louis Jouvet e Jean-Louis Barrault, tiradas do livro Je Suis Homme de Théatre. Palavras que sintetizam a vida e a carreira desse que ficará para sempre como um homem de teatro, dos maiores deste País.

O que não é pouco quando se vive num país que perde a cada dia o seu rosto e cujo teatro, mais que nunca, sobrevive à própria custa e debate-se, ele também, em profunda crise de identidade. Não perdemos apenas um grande ator. Perdemos um homem de teatro. Uma perda irreparável que leva a reflexões dolorosas sobre o estado a que foi reduzida a profissão de ator de teatro no Brasil. Ator de teatro soa redundante, considerando que só se é ator, no sentido que Paulo Autran nos ensinou, no teatro. No cinema ou na televisão, o ator é visita, é passageiro em trânsito, por mais que ali permaneça.


O que se convencionou chamar de “ator de televisão” ou “ator de cinema” é apenas uma forma de identificar o local de trabalho, eventual ou duradouro, de alguém a quem é dado um personagem num filme ou numa novela. Por isso, são risíveis, para dizer o mínimo, esses cursos de ator para televisão e para cinema. E temerários os “métodos de interpretação” usados para obter de um ator comportamento violento, como foi submetido Wagner Moura nas “preparações” para a filmagem de Tropa de Elite. O mestre Stanislavsky (1863-1938) deve ter se revirado de indignação - as suas técnicas de interpretação foram substituídas pelas “técnicas” de um policial, e muito semelhantes a métodos de tortura. Wagner foi submetido a um massacre psicológico, em que não faltou referência a uma violência contra a sua própria filha, para reagir com um murro ao seu, melhor chamá-lo assim, “instrutor” e “construir” seu personagem. Bom ator que é, Wagner Moura certamente dispensaria o “tratamento de choque” - ou a “pedagogia da humilhação”, como definiu seu instrutor policial - para interpretar o capitão Nascimento. O exemplo, porém, não é exceção, é regra. O cinema está cheio de casos parecidos.


A rigor, e pela necessidade às vezes exagerada de verossimilhanç a, nem o cinema nem a televisão precisam do ator. E quando precisam vão ao teatro buscá-lo. Não é preconceito. Trata-se de uma constatação objetiva. O neo-realismo italiano, o Cinema Novo e os recentes filmes brasileiros dão inúmeras provas de que se pode prescindir do ator, stricto sensu, para criar obras inspiradas e renovadoras como Barravento, de Glauber Rocha, ou Cidade de Deus, de Fernando Meirelles. Cinema e televisão não são territórios do ator - Paulo Autran tinha essa consciência, o que não o impediu, quando lhe interessou, de fazer filmes e novelas com resultados memoráveis. A verossimilhanç a, que desde Aristóteles se pede ao teatro, está mais na narrativa que no ator.


Quando Paulo Autran subia ao palco e dizia que era Macbeth ou Coriolano, a platéia aceitava. E ele não precisava “preparar” os personagens saindo pelas ruas a matar os seus desafetos e a oferecer as suas carnes num banquete macabro. No cinema e na televisão, a verossimilhanç a física, que confunda ator e personagem, às vezes é quase uma obsessão. Já a narrativa, infelizmente, nem sempre é verossimilhante. Para entender melhor essas diferenças, há um excelente exemplo dado pelo próprio cinema: Ricardo III, de Al Pacino, que disseca o processo de criação do ator, onde se vêem claramente as fronteiras da verossimilhanç a na narrativa e na interpretação. O filme é a exceção que confirma a regra.

O que isso tem a ver com a perda irreparável de Paulo Autran? Tudo. Sem a presença física de sua autoridade como “apenas um homem de teatro”, ficará difícil estabelecer, em nível razoável, uma reflexão serena sobre o ator e sobre o teatro. Mais ainda neste momento em que o teatro foi entregue à sua própria sorte pelos governos. Em nenhum país o teatro sobreviveu sem o aval e o apoio da sociedade, representada nos poderes constituídos.

No caso de São Paulo, que rende justas e sentidas homenagens ao mais paulista dos cariocas, o teatro há muito deixou de ocupar os interesses dos seus governantes. Seguindo a trilha dos seus antecessores, José Serra privatizou até teatros públicos como o Sérgio Cardoso e o São Pedro, numa cidade e num Estado que tem tão poucos (contam-se nos dedos) teatros públicos. Privatizou sim, apesar do artifício jurídico empregado, com a criação de entidades públicas de direito privado ou coisa que o valha, e do discurso da busca de eficiência. O teatro, incluindo as suas edificações, é um bem imaterial, é investimento permanente, não se compara a estradas e nem persegue a eficiência contábil de uma auto-estrada. Ao mesmo tempo, alguém já se perguntou há quanto tempo não se constrói um teatro público na cidade de São Paulo - tirando obras faraônicas e megalômanas (agora mesmo se diz que o secretário da Cultura do Serra já tem um na manga do colete)? Por que não pensar em teatros como os bons projetos da década de 1950, que nos deram o João Caetano, o Paulo Eiró e o Arthur Azevedo? Teatros que foram inaugurados quando Paulo Autran mal começava a sua carreira de ator. De ator de teatro, apenas. Nós, seu público, seus amigos e discípulos, temos o que chorar com a sua ausência. Que não se veja nos olhos dos que nos governam nenhuma lágrima. Se depender deles, não haverá nesta cidade, neste Estado e neste País ninguém que possa se dizer, como Paulo Autran, apenas um homem de teatro.

Num dos momentos inesquecíveis de Liberdade, Liberdade, Paulo Autran interpretava o discurso de Marco Antonio, em Júlio César, de Shakespeare. Ele terminava com uma indagação que tomo emprestada para adaptá-la à nossa reflexão:

“Este era um homem de teatro.
Como ele, que outro haverá?”

Oswaldo Mendes é jornalista, escritor, diretor, ator e dramaturgo

Um comentário:

Cáh Morandi disse...

olá,
Obrigada por ter colocado um link para meu blog aqui no seu! Lindissimo...me prendi lendo muita coisa por aqui!

Beijos*
Beijos*
Beijos*